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Acaso ou destino o encontro
dos astros celestes, um par
em pleno salão
repleto de sóis, estrelas cadentes

Na órbita de seus olhos
dois corpos em translação

A vida em silêncio ante a explosão
Candentes e sós
Marte-sala e Vênus-bandeira

Em outras palavras
Dancemos ao som
de nós


..

 

A poesia da solidão

requer olhos treinados, que não se deixem ofuscar

pelo incandescente turbilhão

 

Por astúcia ou acaso

notável aos íntimos

da nuance

da noite que tinge a pele

 

onipresente em frio silêncio: é belo e imenso

o negro caminho que eu sei de cor

 

Navego no chão de estrelas

Uiva o vento

Sussurro em proa

 

Há poesia, só

 


Encontre-me

Vou por aí.

Pelo sereno. Pela madrugada.
Só vagar em meio ao incerto.
Todo silêncio, todo negro.

Não sinto dor. Tampouco sabor. Testemunho os simulacros de sensações que julgara pétreas, eternas em seus matizes.

Tudo é ilusão.

Até aqui busquei em vão. O indizível. O inolvidável. Existirá, deveras? Sigo em frente embalado pelo vento, leme liberto, gitano castigado pelas intempéries.

Odisséia traçada em sulcos na carne.

Cruzarei o rio diante de meus olhos. Minha voz restará inaudível sob estrelas. A terra não suportará por outra vez o meu peso.

Mire meus olhos. Recorde. O tempo já não corre.

Encontre-me no que restar dos sonhos.


mare nostrum

a última lhe escorre pelo peito

insubstância fugidia que persiste em consonância

e, sublime, leva junto de si o inescapável suspiro.

 

vazio.

salto no escuro com a incerteza a testemunhar

vamos, vumbora

que mais há por ver?

 

acordo trôpego, âmago em largo descompasso

miro o que não tem nome em recônditos insuspeitos

sem rosto, essência

minha busca é por nós em detalhes despercebidos

 

as palavras emudecem e dão o tom da solidão

nesta noite de chuva para a qual não há abrigo – sou eu a transbordar

fluindo em curvas, quedas e corredeiras

tua perna foz, braço de rio

meus olhos, mare nostrum de sonhos em naufrágio


Haikai de quem vai

vida a esquecer
ao vento, saudade
à noite vem ter


“Definitivo”, de Drummond

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado
do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter
tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas
as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um
amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os
momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas
angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma
pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez
companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um
verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do
sofrimento,perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional…


Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

 

Clarice Lispector


o sonho é uma leoa

Há tempos não sonho. Sonho algum, nem ao menos aqueles que antecedem o despertar e geralmente são acompanhados por um retesamento do corpo. Deixo-me estar na cama por muito tempo ainda após acordar, na vã esperança de voltar a dormir. Tento induzir meus pensamentos na crença de que ao me fixar em algo específico, com determinação, posso moldar meu sonho, domá-lo feito fera de circo. Nada. O sonho segue caminhando rasteiro por trilhas imperceptíveis, inalcançável em meio à savana, e então já não mais sei se sou caça ou caçador. Abro os olhos. É mais um dia de sol. Fecho os olhos novamente. A ausência de sonhos não me incomoda mais que o ritmo dos tambores que ecoam lá fora.


Uma alegoria da caverna, no morro do Vidigal

Matéria publicada no endereço abaixo (maldito wordpress, não consigo mais inserir links…).

http://www.cadernosdereportagem.blogspot.com/2012/01/uma-alegoria-da-caverna-no-morro-do.html


A seguir, cenas dos próximos capítulos…

“Francisco Couto é seu nome de batismo. Francisco pela devoção da finada mãe, Couto advindo do reconhecimento do genitor. Chico é apelido convencionado para qualquer Francisco Brasil afora, inclusive nas Minas Gerais onde este nasceu há declarados 78 anos e de onde saiu, ainda na adolescência, vindo parar no Rio das chuvas de janeiro, fevereiro e março.

A peculiaridade deste Chico é ser da Toca. Chico da Toca, Chico da Pedra, Chico da Caverna. Diferentes epítetos decorrentes do que, há mais de duas décadas, pareceu ser o único caminho aos olhos de Francisco: assumir um buraco entre dois blocos de rocha como sua casa.”

Trecho de matéria a ser publicada em breve, aqui e no blog Cadernos de Reportagem.


do mar

Os muros de água erguidos e subitamente postos abaixo, a espuma que sobe em vagas, como se o mar quisesse ultrapassar o limite imposto pelo céu no horizonte.

O vento é frio e salgado. As gaivotas se foram, o sol se escondeu. Os barcos dos pescadores ficaram ancorados nesta manhã cinzenta.

As ondas investem contra as rochas em seu embate infinito. Ouve-se o som de uma multidão em fúria a cada golpe, um tremor se propaga no ar.

Atento e disperso a um só tempo, compenetrado em idéias flutuantes, deixo-me levar pela ressaca.

O que resta é bruma.


Tunísia, Tahrir, Tottenham, Tatuapé.

Ciente dos tumultos que ocorrem em Londres desde o dia 6, tuíto pela manhã: “música do dia: the clash, london’s burning”. Leio reportagens, vejo imagens, saques, confrontos, moradores pulando de prédios em chamas, carros destruídos, homens encapuzados, policiais diante de lojas invadidas. Quanto mais me informo, mais me ocorrem memórias de manifestações, algumas recentes, outras nem tanto.

Alguns analistas afirmam que as cenas de destruição em Londres têm origem puramente no vandalismo de seus participantes. O mesmo foi dito – quanto tempo faz? – sobre os jovens descendentes de marroquinos, argelinos, tunisianos que atearam fogo a veículos da banlieue parisienne. Mubarak valeu-se da mesma abordagem durante os protestos da praça Tahrir: são vândalos e, como tais, devem ser duramente reprimidos.

O político britânico conservador e membro do Parlamento Europeu Roger Helmer aderiu à linha: “Hora de endurecer. Tragam o exército. Atirem em saqueadores e incendiários à vista”.

Direitos humanos?

Tottenham, onde uma manifestação pacífica – a priori – em repúdio à morte de Mark Duggan por policiais deu início à onda de violência, abrange áreas com as mais altas taxas de desemprego de Londres. Há também um histórico de tensão racial motivada pela abordagem policial a jovens locais. Adicione a recente questão do crédito estudantil, ainda no imaginário coletivo e para a qual o premier britânico David Cameron não deu uma solução satisfatória, e junte tudo sob a pressão da crise econômica européia – que, a reboque, implica em cortes no orçamento e um previsível enfraquecimento de políticas de bem-estar da população.

Pronto. A convulsão social está servida.

Converso com minha colega de escritório Margá sobre os acontecimentos. Falamos de Londres, Paris, Cairo.

“É a única maneira (de mudar a realidade à nossa volta). Atear fogo, quebrar tudo. A via política é ineficiente. Ou, no mínimo, é lenta.”

Miro Margá nos olhos. Confronto as últimas impressões com a percepção que costumava ter dela. Mãe, apicultora, funcionária pública, sempre cordial. A paz em pessoa. Ninguém que costuma lidar com abelhas manifesta-se abertamente a favor de manifestações do gênero, certo? Errado.

Digo que invejo sociedades capazes de se indignarem. Acompanho com olhos cobiçosos os panelaços argentinos, as campas catalãs. Falamos de 1984, A revolução dos bichos. V de Vingança. Wu Ming. Anonymous. Wikileaks. Concordamos. Imediatamente minha pré-existente simpatia por Margá é catapultada à estratosfera da consideração pessoal. Falamos ainda de nossa realidade mais próxima, a corrupção de nossos governantes, pobreza, insegurança. A influência da economia no cotidiano de um povo. Divago. Tuíte das três e meia: “música da tarde: Brixton, Bronx ou Baixada #londonriots”.

“O desejo – de mudança, de conquistas das mais diversas – move o mundo. O medo é o que nos freia”, concluímos. E nos voltamos para os respectivos monitores.


Com certeza?

“Com certeza.”

A expressão me incomoda deveras, e a ouço com mais freqüência do que gostaria.

O que há de certo, afinal? Desconheço. “A morte”, diria alguém afeito a máximas e ditos populares, provavelmente temente a deus – e à morte.

Questionável, também. Qualquer biólogo afirmaria que a morte de um é a vida de outro, que a troca de energia permanece no pós-vida e que tudo está, em maior ou menor grau, interligado por meio de conexões rizomáticas infinitas e, por extensão, incertas.

A certeza da morte só se aplica à vaidade do ego. Ela – a morte (acho de bom tom tratá-la de um modo familiar, intimista, personificando-a. Fomenta a boa vontade na leitura destas linhas entre aqueles que a temem. O medo é diretamente relacionado ao desconhecido) – é certa em sua inevitabilidade para com os seres enquanto indivíduos, porém incerta na medida em que se analisa o porvir, o além-túmulo.

O certo é incerto.

Melhor aceitar a efemeridade do que nos cerca, admitir a nossa transitoriedade pessoal, embora transferível, e seguirmos em frente. Para onde, impossível saber.

Proponho a troca de com certeza por talvez, quem sabe?, quiçá, porventura. Possibilidades em aberto, mas sem cair na falácia do se deus quiser, cláusula pétrea do comodismo.

Cogite o impensável, admita o inimaginável. É uma postura diante da vida, antes que uma filosofia. Um sorvete cujo sabor você nunca experimentou, tangerina com macadâmias, abricó com umbú. Um caminho diferente na volta do trabalho. Mais longo, porém mais agradável. Um novo enfoque, um novo approach, um viés revolucionário. Quantas invenções, quantas descobertas daí adviriam, a cura do câncer, a reinvenção da roda, a descoberta de vida extraterrestre, quem sabe?

Pense nisso quando se deparar com um flerte improvável, ou um convite inesperado. “Que tal um cineminha?”, ou um olhar encontrado em meio à multidão. Uma viagem, um vestido, plantar uma árvore, ter um filho, casar, namorar, ficar, andar de bicicleta. Um sonho, por mais que pareça distante, é tangível a ponto de se materializar em nossos devaneios.

Apenas evite o cuspe pro alto em forma de ‘com certeza’.

Experimente. Ouse. Tente alguns ‘com cerveja’ como recurso estilístico. Ou ‘com cereja’, por que não?

O impreciso é preciso.


Haikai de quem fica

noite esquecida
na ressaca dos sonhos
porto é partida


um dia qualquer

Você acorda.

Mira o estridente relógio-despertador. Põe-se de pé num sobressalto. Para o sono não há hora, minuto, segundo extra. Pensa que não merece começar o dia assim.

Vai para o trabalho. No trajeto repara que a cara de sono não é exclusividade sua. No escritório se esforça em manter um sorriso que, embora esteja longe de ser convincente, ao menos demonstra uma neutra afabilidade e certa camaradagem para com seus companheiros de trabalho, que dividem com você o café de qualidade questionável e as pilhas de relatórios, ofícios e congêneres. Bem, alguns só dividem o café.

Sente fome, mas pensa que se deixar para comer mais tarde talvez consiga criar em sua mente a ilusão de que o dia está passando rápido. Os sapos que você engoliu até este ponto do dia não servem como couvert. Você tenta se lembrar em que momento de sua vida sua carreira enveredou por este caminho – ou pela falta de um.

Pausa para o almoço. Das duas, uma: ou você não tem dinheiro para almoçar onde gostaria, ou não tem ao seu lado a companhia que queria. A qualidade da comida associa-se diretamente às alternativas anteriores. Contudo, seja qual for o cardápio, ou a comida não tem sabor ou você não tem tempo para saboreá-la. Sem olhar o relógio, você sabe que precisa voltar ao trabalho, e é o que faz.

Os papéis parecem ter se multiplicado em sua mesa, assim como os e-mails em sua caixa de mensagens. Seu chefe convoca uma reunião. Uma leve indigestão se anuncia em seu estômago. Se você tem um ente muito querido, é nesse momento que sente saudade.

O dia se arrasta. Reunião, trabalho, e-mails, trabalho. Hora de ir. Quer dizer, uma hora depois da hora de ir.

Horas perdidas no deslocamento de volta para casa, seja devido a engarrafamentos ou pela ineficiência do sistema de transportes públicos, ou ambos. Um motoqueiro jaz no asfalto. Você olha para o lado e nota que o motorista do carro vizinho tem aquela expressão de “puta que pariu ele tinha que morrer logo aqui, e agora?”

Uma música do Chico vem à cabeça. “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego…”

Era tráfego ou trânsito? Contramão ou quarta-feira?

Não importa.

Você acorda.


Amanhecer em chiaroscuro

Ouço relatos queixosos a respeito da solidão. Então observo, não com surpresa, que boa parte dos amigos e amigas que estavam curtindo a solteirice há pouco tempo engrossam agora a fileira dos enamorados. Carência?

O frio só piora tudo. Amplifica o vazio, dizem. Talvez somente uma boa companhia seja capaz de esquentar as noites de céu limpo e vento gélido, a despeito dos agasalhos com cheiro de mofo retirados do armário e das burguesas meias a abrigar os pés. Pois a aproximação do inverno torna tudo mais cinza, e talvez a busca por alguém traga mais cores à estação. Ou talvez seja apenas uma espécie de capricho, afinal o vinho esquenta nossas veias indiferente ao nosso status de relacionamento, e estão aí chilenos, argentinos, franceses ao nosso dispor – os vinhos, os vinhos…

Mas para deixar-se acompanhar faz-se necessária uma espécie de preparação. Clichêzaço, mas você, moçoila, mancebo, precisa sentir-se bem em sua solidão para um pleno desfrutar de quem estiver ao seu lado. Aprecie as ruas vazias, ande de mãos dadas com os bolsos, aqueça a alma com a visão de um casal de namorados passeando de braços entremeados rumo ao cinema. Sem dó, sem dor, o amor é filme, dizem, para atuar e dirigir urge que saibas ser espectador.

Então, com esses olhos de quem sabe apreciar a beleza nos pormenores – mesmo que não haja com quem tecer comentários a respeito – siga em frente. O tempo voa, a vida é um sopro de ar quente na noite fria. E ao cabo de todo outono nos aguardam um edredon e um amanhecer em chiaroscuro, a dois.


Viver é mais que viver(?)

É natural querer morrer? Não morrer, simplesmente, de morte morrida, feito o desencadear sequencial do nascer, crescer, reproduzir e ciao, fluxo inexorável ao qual infindas gerações se habituaram com maior ou menor grau de dramaticidade e elocubrações. A referência aqui feita diz respeito à interrupção súbita e inapelável da vida, ponto final em aspirações diversas e possibilidades mil, para o bem ou para o mal. Pulo de ponte repleto de lirismo, salto no vácuo, projeção no infinito, pássaro desprovido de asas, seja artista frustrado ou amante desiludido. Passaria a vida pelos olhos do anjo caindo, tal e qual filme independente que poderia ser cult mas que acaba em pulp?
A infância em cidade pequena, a primeira palmada do pai, a goiabeira, o sorvete de nêspera, o tombo de bicicleta na ladeira de cima, o mergulho sem roupa no rio sem fundo, o cheiro de café, o cheiro da chuva, o primeiro beijo e o medo do escuro.
O vento, o céu, a estrada, os amigos, as dúvidas, os amores risíveis e todas as certezas que se tornariam dubitáveis dali a pouco, a solidão feita perene no decorrer dos anos, todas as pequenas pequenas-felicidades tão pequenas e rarefeitas e tão persistentes na memória de forma indefinida, os contornos borrados no relevo das lembranças pelo soerguimento de cordilheiras de pseudo-problemas, grãos de areia em altitude quando comparados aos Everests e Andes e Himalaias vindouros.
E então o inverno, a respiração fumegante na noite, o álcool a esquentar as veias, a efemeridade dos sorrisos e de tudo o mais, esbarrões impessoais, bolas de pinball, bilhar, roleta, Dostoievski estava certo, a vida é um jogo, e jogadores caminham pelas ruas vazias, mãos dadas aos bolsos, luzes amarelas intermitentes a piscar nos cruzamentos, o asfalto sempre está molhado, é o tempo que escorre para os bueiros, a cabeça a girar, pensamentos saltimbancos, uma música de letra indecifrável toca ao longe, a mente inventa sua própria canção em um ritmo que lhe é peculiar, o som dos próprios passos trôpegos, não há amanhã.
Não há beleza em querer? Pôr fim ao vazio, dar cabo do incerto, do quem sabe, do pode ser. Fim da história como a conheceu, Polaroid instantânea e eterna no desenrolar do movimento, um salto para o sombrio, porém instigante desconhecido. Admita o fascínio da plenitude de outrora, ou de nunca: o fez? Errado. Nada é certo. Não há, não é. Nonada.


Hit the road

Ela disse e então foi como um tapa na cara sem o estalo, o ardor nas bochechas como única reação. “Você é assim. Muda de idéia toda hora. E nunca vai mudar.” Sou? Não sei. Talvez sim, ou não, acho que sou mesmo um sujeito que saca a imprevisibilidade da vida, dos vários descaminhos e também das voltas e idas. Ouço e tenho a sensação, hoje certeira mas que já foi apenas intuição, de que sou de forma diferente, a existência aliada à consciência de sua/minha inserção em um acúmulo de tempos, imemoriais na mesma medida em que fugazes. Fiquei então meio que ofendido, resquícios de uma ânsia forjada – o homem teima em querer se ajustar, e sua declaração é como um atestado de falibilidade a este intento sabotado já em sua origem, já em meu âmago, posto que em verdade gosto de quem eu sou. Sou eu mesmo, mas não sempre o mesmo, não acho isso tão complicado, não, na verdade é até bem simples, minhas crenças e atitudes são suscetíveis à variabilidade de minhas experiências. E não deve ser assim? Quem não gosta de se surpreender? No meu caso é o ‘óbvio ululante’, vejo a última tirinha do Moon e do Bá, leio as mais novas linhas da Provasi, e parece que tudo inspira e conspira. Hit the road, Jack. “…Muda de idéia… nunca vai mudar.” Sem querer ela mata a charada, porque um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio, nunca trilha duas vezes o mesmo caminho, e eu sei. Digo num solilóquio “Vá, e logo, vá enquanto pode, vá ao sabor do vento e por onde suas pernas te arrastem, pois você carrega o gosto da terra e os olhos de nuvem. Erga a cabeça e siga em frente, não marche, voe, o verde a margear o asfalto com o azul por teto, encha as mãos com o tempo e sinta que você ainda vive. Passe, ficando, ou fique, passando, mude sem mudar, você tem um segredo e só deve contá-lo a quem realmente tiver a disposição de ouvi-lo. Hit the road, Jack, veja todos os rostos, enxergue além de seus olhos, reconheça neles sua história, a história, e em cada ruga um arabesco, em cada palavra uma nota, deixe-se cair na grama e ouvir a música da noite na voz das estrelas, pois somos todos capitães e passageiros a um só tempo, maestros e solistas, nesta imensa nave que é seu umbigo.”


Procura-se

De preferência novo. Limpo. Confiável. Inoxidável.

Que não reclame do acelerar da frequencia. Que não solte rangidos a cada curva do caminho. Bom de breque, de preferência com tanque cheio. Que não precise de recall nem retífica, remold ou resina. Resistente a todas as batidas, seja em colisão ou blitz. Germânico na eficiência e nipônico na exatidão, tumtumtumtumtumtum, sem recortes nem ruídos, sem improviso e paradinhas.

Eu quero outro coração.


a insustentável…

Esperei tentando te afastar de meus pensamentos. A porta não se abria, o ponteiro orbitava e você nada. “Isso passa”, sentenciou ontem à noite, sem parecer crer muito no que dizia. Você não sabia onde pousar as mãos, eu apenas ficava ali, e fazia frio na chuva da qual nos abrigávamos. O beijo era o mesmo, os olhos, contudo, eram de nunca.

Nunca mais seu sorriso, nunca mais seu carinho. Seu perfume se esvairá ao sabor dos ventos de sudoeste, seu caminhar rumará para longe naquele familiar plec-plec. Aos poucos, quem sabe?, até mesmo sua imagem deixará de povoar meus sonhos, e pesadelos, e desvarios, e insônias, e então saberei que é meu fim, porque existi em você, fui mais eu quando ao seu lado, e sei – não sei – que com você foi assim também. Porque eu fui teu primeiro de fato, a ver dentro dos teus olhos essa tua sede, a reconhecer em teus gestos a ressaca, e te acalmar com a própria fúria. Eu calei tua boca com a minha e tudo fez sentido.

Não, não esquecerei, nossos abraços na noite quente e as mãos dadas pela rua, a sombra da amendoeira e o mar lambendo nossos pés, a conversa indevida colada no ouvido e na mente e até das despedidas me lembrarei. Everytime we say goodbye i die a little, e hoje, apesar de tudo, apesar de nós, mesmo que tudo acabe, que nunca mais nos vejamos ou que você encontre outro porto, sabendo que toda escolha implica em uma renúncia, eu abro mão de tudo o mais que não você.